Violência obstétrica em Moçambique

Histórias de berros, gritos, proibição de usar telemóvel e até palmadas são frequentes. “Uma enfermeira bateu numa parturiente em frente de todas nós. Esquece-se de que no momento do parto a mulher fica um pouco fora de si. E nada justifica bater”, disse Joaneta Cossa, que deu à luz pela primeira vez no Centro de Saúde 1 de Junho, em Maputo, no bairro Ferroviário.

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WLSA

A Bíblia disse: “Tu, mulher, parirás com dor”. Em Moçambique, além das dores próprias do parto, muitas parturientes sofrem violência obstétrica, isto é, maus-tratos por parte das enfermeiras nas maternidades.

Histórias de berros, gritos, proibição de usar telemóvel e até palmadas são frequentes. “Uma enfermeira bateu numa parturiente em frente de todas nós. Esquece-se de que no momento do parto a mulher fica um pouco fora de si. E nada justifica bater”, disse Joaneta Cossa, que deu à luz pela primeira vez no Centro de Saúde 1 de Junho, em Maputo, no bairro Ferroviário.

Cossa conta que a enfermeira e a assistente permaneciam no gabinete a escutar música e a conversar. Quando chegou a hora do parto, ela gritou mas não ouviram. Acabou por ter o parto com a ajuda de outras mulheres experientes. Mas nem todas as parturientes têm a mesma experiência negativa. “Tive sorte, encontrei uma boa enfermeira”, disse Lina Delfino, também parturiente no Centro de Saúde 1 de Junho. “Mas tinha medo, pois já ouvira falar dos maus tratos naquela maternidade”.

Segundo a experiência de Célia Mabanga, parturiente no Hospital Geral de Mavalane, em 2012, as enfermeiras tratavam mal, até um certo ponto: “Basta tirar dinheiro, tratam-te bem”. Mabanga acrescenta: “Se és pobre e não tens dinheiro e não és familiar, automaticamente estás condenada ao mau atendimento. Elas não têm amor à profissão”.

Más condições higiénicas

As nossas entrevistadas descrevem o Centro 1 de Junho como uma maternidade com condições higiénicas péssimas, chão sempre húmido, casas de banho mal cuidadas e mal cheirosas, pensos espalhados pelo chão, água a gotejar nas torneiras, e redes mosquiteiras sujas.

“O trabalho de parto é sujo, devia haver mais empenho em manter o local em boas condições. As utentes têm o direito de ter filho num sítio com condições dignas”, disse Cossa. O problema das redes sujas também é reportado no Hospital Geral de Mavalane. “Aquelas redes são antigas e não cuidam bem delas, por isso as pacientes não as usam”, disse Mabanga.

Tentativa de mudança

O Ministério de Saúde (MISAU) reconhece o problema e está a tentar melhorar o atendimento através da Iniciativa Maternidade Modelo, que pretende mudar o comportamento dos profissionais de saúde e dar uma assistência confortável às utentes. O projecto está a funcionar desde 2011, nos hospitais provinciais, centrais, gerais e em alguns distritais. Agora é permitido à parturiente trazer um acompanhante, escolher a posição para dar à luz, e caminhar na maternidade. No entanto, nem sempre tudo se passa conforme se decide.

“Quando começava a andar, a enfermeira gritava e mandava-me voltar para a sala”, lembra Cossa, que teve um parto em 2012. “Em nenhum momento me disseram que podia trazer alguém para acompanhar o parto, e muito menos escolher a posição, porque a enfermeira nem estava no momento em que o bebé saiu”.

No entanto, as queixas continuam. “O atendimento não mudou. Ainda há parteiras que tratam mal as pacientes, até batem, cobram dinheiro, como acontecia nas maternidades há 15 anos, quando tive a minha primeira filha em Mavalane”, disse Adélia Magaia, parturiente no hospital de Mavalane, em 2013.

“As enfermeiras fazem de propósito, principalmente quando somos nós adultas, dizem deixem lá, essa aí já sabe como se faz, não é nova aqui. E eu tive o parto sozinha. Foi mais complicado que o parto de 2000, do meu segundo filho”, disse Rosa Mafela, parturiente no Centro 1 de Junho, em Agosto de 2013.

“No sector da saúde a pessoa faz a formação, logo tem colocação, às vezes não tem vocação, e aí começam os problemas dos maus-tratos”, disse Ana de Lurdes Cala, chefe do Departamento Central para a Área de Qualidade e Humanização, do MISAU.

Para Mabanga, a iniciativa da humanização é boa, mas deve haver mais vigilância e controlo para assegurar que as enfermeiras atendem as pacientes com respeito. “Elas esquecem-se de que as pacientes são pessoas, embora elas não gostassem nem um pouco de serem maltratadas”, disse.

Falta pessoal

Outro problema é a sobrecarga de trabalho. O Centro 1 de Junho só tem quatro enfermeiras na maternidade, uma em cada turno, para atender cerca de 10 partos por dia.

“Precisamos de mais enfermeiros, já submetemos o pedido à Direcção de Saúde da Cidade e à Direcção Distrital, mas a resposta é de que há poucos enfermeiros », disse a enfermeira Mara André Nhamuchue, responsável da maternidade. Em Mavalane é normal um cenário de enchente na sala de partos, camas lotadas, duas mulheres a partilharem a mesma cama e colchões nos corredores.

Há maternidades com apenas duas enfermeiras, como é o caso do Centro de Saúde de Matendene. “Essa é a nossa realidade”, disse Cala. Aqui, estima-se que uma enfermeira atenda cerca de 25 partos por turno. “É muito trabalho”, observa Cala. “Mas, mesmo assim, não quer dizer que ela deva ser malcriada e despachar as pacientes”.

Vox populi
Joana Ilda Meleque, 21 anos, estudante

O atendimento não é muito bom, excepto dando dinheiro à enfermeira. Se calhar aquela enfermeira está cansada ou não tem bom salário e acaba por descarregar nas pacientes.

Mércia Cristina Fernando, 29 anos, estudante e professora, mãe de uma criança

Quando tive o parto, fui bem atendida. Mas há mulheres que têm o parto sozinhas, as enfermeiras não ajudam. Há também pacientes que não respeitam os enfermeiros.

Luís da Costa, 50 anos, antigo combatente, pai de dois filhos

Nas duas vezes que a minha mulher teve o parto não teve motivo de queixa, embora existam algumas enfermeiras que não têm paciência e acabam por ralhar para as pacientes.

Borges Avelino, 21 anos, estudante

Não tenho ouvido boa coisa das maternidades. Dizem que o atendimento é diferenciado, acho que as capacidades financeiras é que estão por detrás.

Angélica Xavier, 20 anos, estudante

A minha irmã foi à maternidade e não foi bem atendida, porque não tinha conhecidos.

Sheila Nhampule, 27 anos, estudante

Pelo que tenho ouvido nas conversas, o atendimento não é de qualidade.

Os riscos de ser mãe em Moçambique
Em Moçambique, 14 porcento das mortes de mulheres em idade reprodutiva são atribuídas a causa materna. Isto é, resultam de complicações da gravidez, do parto e no período de 28 dias imediatamente a seguir. Nas mulheres mais jovens, com idades entre os 15 e os 19 anos, vemos que uma em cada quatro mortes (24%) é atribuída a causa materna. Este alto número resulta de várias causas como:

• Hemorragias uterinas

• Malária

• VIH/SIDA

• Hipertensão induzida pela gravidez (hiplepcia)

• Sépsis puerperal (infecção contraída durante o parto e no período após o parto)

• Aborto inseguro

No entanto, com adequados cuidados de saúde, estes problemas poderiam ser detectados atempadamente, de modo a prevenir as mortes maternas.

Mas o acesso das mulheres à saúde não é fácil. Nos inquéritos, as mulheres apontam como dificuldades a obtenção de permissão para ir ao tratamento, de dinheiro para o tratamento, a distância até à unidade sanitária e a dificuldade de encontrar uma companhia para se deslocar à unidade sanitária. Quase dois terços das mulheres (62 porcento) declaram que tiveram pelo menos um problema no acesso aos cuidados de saúde.

A extensão da rede sanitária ainda não é suficiente para cobrir todo o país, pelo que muitas mulheres têm de andar grandes distâncias para receber cuidados de saúde. As condições das próprias unidades sanitárias não são, muitas vezes, adequadas: falta pessoal, equipamento, medicamentos e boa disposição, como vimos no artigo principal sobre as maternidades.

Fonte: IDS 2011, INE

A moça teve parto sozinha e o bebé morreu
Depoimento de uma testemunha no Hospital Central de Maputo “Eu estava de baixa na maternidade do Hospital Central de Maputo. Ao meu lado estava uma moça dos seus 30 anos, grávida de oito meses e que corria o risco de perder o bebé. Começou a sentir contracções de parto. Levantei-me para ajudá-la, e fui chamar a enfermeira”. «Diz a ela para não fazer força», “respondeu a enfermeira, que estava sentada a conversar”.

“A moça, já com dores fortes, fez força e o bebé começou a sair pelas pernas. Voltei a chamar a enfermeira. Ela andava devagar, descontraidamente, como se nada estivesse a acontecer. Quando chegou, começou-se a zangar e a falar mal para a moça”. «O que você está a fazer? Eu não disse para você não fazer força?», “disse. Foi aí que começaram a ajudá-la, puxaram o bebé, mas este saiu morto”.

“Não sei se aquelas enfermeiras agiram daquela maneira porque queriam receber algum pagamento. Na sala éramos quatro mulheres, mas só uma é que estava a receber tratamento especial, sempre atenciosas com ela. Para as outras, só gritos e berros”.

O que é violência obstétrica?

Violência obstétrica é uma série de tratamentos desrespeitosos, que vão desde piadinhas e comentários maldosos e preconceituosos, ao completo desrespeito e intervenções médicas feitas contra a vontade da mãe durante o parto.

Estes são alguns exemplos de actos de violência obstétrica:

• Tratar com agressividade, desprezo, ou atribuir nomes

• Submeter a mulher a um tratamento humilhante, como deixar as portas abertas enquanto estiver na posição do parto

• Impedir a parturiente de se comunicar ou circular

• Tomar procedimentos sem antes explicar a razão dos mesmos

• Subir na barriga para expulsar o bebé

• Deixar pessoas estranhas entrarem

• Ameaçar, chantagear ou assediar

A humanização na saúde
Inclui:

• Rapidez no acesso aos cuidados de saúde

• Garantia de cuidados de qualidade

• Participação nas decisões e respeito pelas preferências da parturiente • Informação clara, compreensível e apoio à autonomia

• Apoio emocional, empatia e respeito

• Envolvimento de familiares e cuidadores

• Continuidade de cuidados

Humanizar como solução

Desde 2011, o MISAU promove a humanização na prestação de cuidados de saúde, para acabar com os maus-tratos, cobranças ilícitas e longo tempo de espera, as queixas que mais se registavam.

“A humanização está para resolver o problema do Sistema Nacional de Saúde, porque sentimos que houve uma ruptura de valores”, explica Ana de Lurdes Cala, chefe do Departamento Central para a Área de Qualidade e Humanização, do MISAU. “As queixas já estão a diminuir”.

Cala observa que quem trabalha na maternidade deve ser uma pessoa que gosta de fazer o que faz. Quando não é assim, surgem os maus-tratos e a falta de humanização.

O MISAU está a criar comités de qualidade e humanização, integrados pelos líderes religiosos e comunitários locais, que servem de “olho e ouvido” para levar os problemas do povo às unidades sanitárias e vice-versa. Já foi criado o comité nacional, os de nível provincial e distrital (ainda não cobriram todos os distritos) e 198 nas unidades sanitárias.

* A WLSA é uma organização de direitos das mulheres com atuação em Moçambique, onde este texto foi orirignalmente pubicado.
*AS OPINIÕES DO ARTIGO ACIMA SÃO DO AUTOR(A) E NÃO REFLETEM NECESSARIAMENTE AS DO GRUPO EDITORIAL PAMBAZUKA NEWS.
* PUBLICADO POR PAMBAZUKA NEWS
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